Na última década do século XX, assistimos, em todo o mundo, a uma multiplicação dos estudos sobre o tema da cidadania, envidando-se um grande esforço analítico para enriquecer a abordagem conceptual da noção de cidadania e da sociedade civil.
As teorias marxistas enfatizam a reconstituição da sociedade civil - ideia primeiramente ventilada por Hegel e retomada por Marx. Na realidade, pode-se afirmar que para Marx e Hegel, a noção de sociedade civil abrangia todas as organizações e actividades fora do Estado, inclusive as actividades económicas das empresas.
A cidadania concerne, desse modo, à relação entre Estado e cidadão, especialmente no tocante a direitos e obrigações. Teorias acerca da sociedade civil, preocupadas com as instituições mediadoras entre o cidadão e o Estado, adicionam à compreensão dessa relação uma gama mais variada de possibilidades. É importante observar, contudo, que assim como a cidadania, a noção de sociedade civil nunca foi uma ideia central nas ciências sociais.
No entanto, da mesma maneira que o termo “cidadania”, também “sociedade civil” constitui alvo de discussão. Também aqui poderíamos isolar três perspectivas principais. Para a teoria marxista, sociedade civil constituiria uma esfera não-estatal de influência que emerge do capitalismo e da industrialização; Por sua vez, a definição normativa leva em conta o desenvolvimento de efectiva protecção dos cidadãos contra abusos de direitos. Já a visão das ciências sociais enfatiza a interacção entre grupos voluntários na esfera não-estatal, conforme a definição abaixo:
Sociedade civil representa uma esfera de discurso público dinâmico e participativo entre o Estado, a esfera pública composta de organizações voluntárias, e a esfera do mercado referente a empresas privadas e sindicatos.
Constata-se que cidadania e sociedade civil são noções diferentes: ao passo que a primeira é reforçada pelo Estado, a última abrange os grupos em harmonia ou conflito, mas ambas são empiricamente contingentes. A sociedade civil cria grupos e pressiona em direcção a determinadas opções políticas, produzindo, consequentemente, estruturas institucionais que favorecem a cidadania. Uma sociedade civil fraca, por outro lado, será normalmente dominada pelas esferas do Estado ou do mercado. Além disso, a sociedade civil consiste primordialmente na esfera pública, onde associações e organizações se engajam em debates, de forma que a maior parte das lutas pela cidadania são realizadas em seu âmbito por meio dos interesses dos grupos sociais.
Neste início do séc. XXI, em que as dinâmicas históricas extravasam o quadro dos protagonistas tradicionais; quando a múltipla pertença individual resultante do jogo das liberdades pessoais e colectivas sustenta novas instituições fundadas no direito originário da liberdade de associação e que realizam potencialidades do ser humano; quando, na ordem política interna, o estado se tornou grande demais para as pequenas tarefas e pequeno demais para as grandes e quando, nas relações internacionais, o fim da velha ordem do equilíbrio das duas superpotências cede o lugar, de modo lento e complexo, à nova ordem poliárquica, é patente que aumenta o espaço da sociedade civil.
A sociedade civil pode definir-se como rede de instituições de origem privada e de finalidade pública. A sua constituição apoia-se na pertença dos membros a instituições. A sua finalidade estende-se a todos os fins compatíveis com um bem comum. A sua dimensão é extraordinariamente variável, desde a esfera local à transnacional. A sociedade civil é, assim, uma rede de instituições culturais, cívicas, religiosas, sociais e económicas, sobrepostas por laços mútuos e entrosadas por múltiplos micro-poderes. As suas faces são as mais diversas, em virtude da múltipla pertença individual e da potencial presença transnacional e global. Dos poderes às redes de informação; de universidades, igrejas, clubes desportivos, meios de comunicação, até às associações empresariais, sindicais e profissionais; das famílias às organizações não-governamentais, a sociedade civil renova os equilíbrios político-sociais, criando um “caos criativo”.
Enquanto rede de instituições que enquadram as potencialidades da existência individual, a sociedade civil tem vindo a ser perspectivada segundo duas tendências divergentes. Em termos minimalistas, constitui o domínio das associações privadas voluntárias: grupos de interesses locais, regionais, associações sindicais, filantrópicas, recreativas, culturais, paróquias, organizações de defesa do ambiente, do património, dos direitos, do consumidor, entre outras. Num sentido maximalista, inclui todos os tipos de associações de origem privada e finalidade pública e que formam o mosaico complexo das sociedades contemporâneas: famílias, igrejas, órgãos de comunicação social, empresas, poder local, grupos geracionais, organizações não-governamentais, sindicatos, movimentos sociais, grupos de interesses, e grupos informais de pessoas empenhadas em actividades de alcance público.
Entre ambas as tendências, afirma-se uma outra tipologia que classifica as instituições da sociedade civil segundo o respectivo impacto na vida pública. Em primeiro lugar vêm as instituições que enquadram a existência privada, tal como famílias e grupos de parentesco, realizam funções primárias de integração social. Um segundo tipo, com funções mais elaboradas de socialização, inclui as associações de lazer, desporto e espectáculo e os organismos de cultura, incluindo universidades, museus, fundações, movimentos intelectuais e meios de comunicação social. Um terceiro tipo é das organizações profissionais, sindicais, patronais e empresariais que fazem pesar os direitos dos associados no mercado que, na perspectiva da sociedade civil, é também estrutura de relações sociais. Um quarto é de organizações cívicas, de defesa dos direitos humanos, ambiente, património, consumidor, até ao limiar dos grupos de pressão e de interesse que coexistem com os partidos políticos
Qualquer das classificações apontadas de sociedade civil revela a coexistência de instituições entrosadas e sobrepostas em rede. A origem privada distingue-a da actividade pública de governação que caracteriza o estado, dentro do novo entendimento da soberania partilhada. A finalidade pública distingue-a da actividade do sector privado e da iniciativa individual. Mas, precisamente, ao envolver a vertente institucional da acção humana e ao mediar entre estado, mercado e existência privada, a sociedade civil oferece um espaço simultaneamente voluntário e público a exigir virtudes próprias do sector privado - a liberdade – bem como do sector público - sentido de justiça.
Este carácter de rede constitui a primeira novidade da sociedade civil, que nem sempre é bem compreendida. A cultura cívica actual no Ocidente enaltece, simultaneamente, os direitos individuais e o aspecto comunitário da existência em detrimento do individualismo, sem compreender a sua comum origem na sociedade civil. É nesta que se gera a vida associativa, a evolução das mentalidades, a participação na vida pública e a feitura dos padrões de civismo: é a sociedade civil que introduz a devolução de poderes, a organização autónoma de interesses, e outras formas de cidadania participativa conforme o princípio “tanta sociedade quanto possível, tanto estado quanto necessário”. O conceito revela que estamos perante uma tendência histórica que obriga a repensar velhos modelos convencionais de análise política e social.
Caso a sociedade civil não se afirme, a vida pública será dominada pelas oligarquias que actualmente disputam o estado democrático.
A cura para os cancros sociais consiste em reforçar a cidadania, no sentido de esfera originária em que participam as virtudes de respeito pela lei natural. Por isso, a sociedade civil faz pensar nas vantagens políticas de uma cidadania participativa.
Síntese de vários