Depois de saber quem ganha com tanto incêndio (artigo de José Gomes Ferreira) temos também os incêndios do regime (artigo de Paulo Varela Gomes) no "Público" do dia 11:
"O território português que está a arder - que arde há vários anos - não é um território abstracto, caído do céu aos trambolhões: é o território criado pelo regime democrático instalado em Portugal desde as eleições de 1976 (a III República Portuguesa).
Está a arder por causa daquilo que o regime fez, por culpa dos responsáveis do regime e dos eleitores que votaram neles.
Ardem, em Portugal, dois tipos de território:
Em primeiro lugar, a floresta de madeireiro, as grandes manchas arborizadas de pinheiro e eucalipto. A floresta arde porque as temperaturas não param de subir e porque, como toda a gente sabe, está suja e mal ordenada.
Não foi sempre assim.
Este tipo de floresta começou a crescer, nos últimos 50 anos, com a destruição progressiva da agricultura tradicional, ou seja, com a expropriação dos pequenos agricultores, obrigados, em primeiro lugar, a recorrer à floresta pela ruína da agricultura, para, depois, perderem tudo com os incêndios e desaparecerem do mapa social do país.
Também isso está na matriz desta III República - ela existe para "modernizar" o País, o que também quer dizer acabar com as camadas sociais de antigamente, nomeadamente os pequenos agricultores.
Em 2005, os distritos de Portalegre, Castelo Branco e Faro ardem menos que os outros e não admira, já ardeu aí muita da grande mancha florestal que podia arder, já centenas de agricultores e silvicultores das serras do Caldeirão ou de S. Mamede perderam tudo o que podiam perder.
O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos mais feios e mais destruídos do país, os do litoral Centro e Norte. Os citadinos podem ver esse território, nas imagens da televisão, a arder, por detrás dos bombeiros exaustos e das mulheres desesperadas que gritam "Valha-me Nossa Senhora!".
É o território das casas espalhadas por todas as encostas e vales, uma aqui, outra acolá, encostadas umas às outras, sem espaço para passar um autotanque, separadas por caminhos serpenteantes, que ficaram, em parte, por alcatroar.
É o território das oficinecas no meio de matos de restolho sujo de óleo, montanhas de papel amarelecido ao sol, garrafas de plástico rebentadas.
É o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruados a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas.
É o território que os citadinos, leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas auto-estradas, o território onde, à beira de cada estradeca, no sopé de cada encosta, convenientemente escondido dos olhares pelas silvas e pelos tufos espessos de arbustos, há milhares - literalmente milhares - de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade, embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades).
Este território foi criado, inteiramente criado, pela III República. Nasceu da conjugação entre um meio-enriquecimento das pessoas, que, 30 anos depois do 25 de Abril, não chega para lhes permitir uma verdadeira mudança de vida, e o colapso da autoridade do Estado central e local, este regime de desrespeito completo pela lei, que começa nos ministros e acaba no último dos cidadãos.
É o território do incumprimento dos planos, das portarias e regulamentos camarários, o território da pequena e média corrupção, esse sangue, alma, nervo da III República.
É evidente que a tragédia dos campos e das periferias urbanas portuguesas se deve também ao aumento das temperaturas. Para isso, o regime tão-pouco oferece perspectivas.
De facto, seria necessário mudar de vida para enfrentar o que aí vem, a alteração climatérica de que começamos a experimentar apenas os primeiros efeitos:
Por exemplo, seria necessário reordenar a paisagem, recorrendo à expropriação de casas, oficinas, armazéns, sucatas;
Seria necessário proibir a plantação de eucaliptos e pinheiros.
Na cidade, pensando sobretudo nas questões relativas ao consumo de energia, seria necessário pensar na mudança de horários de trabalho, fechando empresas, lojas e escolas entre o meio-dia e as cinco da tarde de Junho a Setembro, mantendo-as abertas até às oito ou nove da noite, de modo a poupar os ares condicionados - cuja factura vai subir em flecha.
Modificar os regulamentos da construção civil, de modo a impor pés-direitos mais altos, menos janelas a poente, sistemas de arrefecimento não eléctricos.
Para alterações deste calibre - que são alterações quase de civilização - seria preciso um regime muito diferente deste, um regime de dirigentes capazes de dizer a verdade, de mobilizar os cidadãos, de manter as mãos limpas...
...Espero um rebate de consciência política por parte destes políticos, ou o aparecimento de outros.